quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

DRAMATURGIA EM FOCO: EDWARD ALBEE Parte 1


Edward Albee apareceu repentinamente na cena teatral nor­te-americana no início dos anos 60, com vigorosos trabalhos de um só ato, que alcançaram grande sucesso nos teatros off-Broadway. Sua primeira peça, A História do Zoológico (The Zoo Story), já incide sobre a complexa problemática que dominará toda sua obra: a real comunicação entre homens de uma sociedade como a norte-americana, em oposição a relação entre as imagens apenas sonhadas e que as pessoas tentam defender da realidade, num jogo que leva a frustrações quase sempre irresolvíveis. Mas, será com Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? (Who’s Afraid of Virginia Woolf ?), seu trabalho de maior densidade, que Albee se afirmará no teatro mundial contemporâneo, conquistando público e crítica.
Entretanto, após o sucesso de Virgínia Woolf em 1962, Albee vem acumulando uma série de fracassos de público e de críti­ca, apenas interrompida em 1967 com Um Delicado Equilíbrio (A Delicate Balance), peça que lhe valeu o prêmio Pulitzer. Essa premiação foi encarada por muitos como um reparo a injustiça que lhe fora feita anteriormente quando aquele prêmio não lhe foi outorgado por Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?. Parecen­do não se incomodar com os insucessos, Albee continua a produzir novas peças e adaptações – algumas a nível experimental, como Box-Mao-Box, de 1968 –  dedicando-se intensamente ao lançamento de novos dramaturgos, por intermédio de uma associação de produtores teatrais, a Playwright’s Unit.

QUEM TEM MEDO DE EDWARD ALBEE?

Desde seu nascimento – a 12 de março de 1928, em Was­hington – Edward Franklin Albee esteve ligado ao teatro. Filho de pais desconhecidos, com duas semanas de idade foi adotado por Reed Albee, proprietário de uma grande cadeia de teatros de vaudeville, casado com Frances, vinte e três anos mais jovem do que ele. O pai adotivo, milionário, era um homem pequeno, fraco, de presença quase insignificante. Frances Albee, ao contrá­rio, era voluntariosa, mimada e gostava de levar vida luxuosa.  Edward nunca conseguiu ligar-se afetivamente a seus pais adotivos, com quem manteve uma convivência difícil. Sua maior ligação foi com a avó materna, Cotta. Essas características familiares aparecerão indelevelmente em sua obra, onde todos os casais têm uma convivência desastrosa, à beira do desequilíbrio. A mulher é quase sempre dominadora, vigorosa e insatisfeita, agredindo e humilhando constantemente o marido — tímido, fra­co e facilmente manejável.


Seu caráter independente e sua precocidade – escrevia poe­mas desde os seis anos de idade –  explicam em parte sua dificul­dade de adaptação à disciplina e à vida coletiva. Essas dificulda­des se agravam em 1943, quando seus pais resolvem colocá-lo na escola militar de Valley Forge. Somente no ano seguinte sua vida escolar começa a se estabilizar. E então matriculado em Choate, escola onde estudaram John E. Kennedy e John Dos Passos. Nessa época passa a escrever intensamente – poemas, crô­nicas e discursos adolescentes contra o monstruoso exercito das mulheres, dominadoras e autoritárias.
Em Choate, Albee inicia também seu primeiro ensaio de en­vergadura A Cadeia dos Descrentes. Na verdade, já então es­crevia para teatro, embora só reconheça Aliqueen uma farsa em três atos escrita aos doze anos de idade um antecedente literário de sua primeira peça de vulto. A História do Zoológico. A revista literária editada em Choate publicou um longo melo­drama em um só ato, de Albee: Cisma (Schism), naturalmente nunca encenado.
Em 1946, depois de uma breve estada no Trinity College, onde se engajara no grupo de teatro, sua educação formal está terminada. No ano seguinte, consegue seu primeiro emprego: pas­sa a escrever os textos dos programas musicais de uma rádio de Nova York, a WNYC.
Aos vinte anos de idade, após uma conturbada convivência com sua família, Albee abandona a casa dos pais e vai viver em Nova York. Sua saída de casa foi mais do que um rompimento com seu passado. com sua formação aristocrática e com o meio familiar: foi um rompimento com os projetos de sucesso e fortuna que seus pais queriam ver reafirmados e realizados nele; um rompimento com as propostas do american way of life.
A decisão de enfrentar Nova York foi sem dúvida apoiada pela pensão que começara a receber da avó materna os juros da herança que lhe deixara ao morrer, a quantia nada desprezível de cem mil dólares. Embora tivesse assegurada uma quantia se­manal que lhe garantia a sobrevivência. Albee passou a trabalhar nas mais diversas atividades – foi vendedor, office-boy, garçon e mensageiro da Western Union. Em 1952, esteve alguns meses na Itália. Em seu tempo livre, porém, continuava a escrever poe­mas e passava boa parte das noites nos barzinhos de Greenwich Village, convivendo com a jovem intelectualidade americana de pós- guerra. E então que entra em contato com o pensamento críti­co que germinava nos beatniks, nos núcleos formadores dos Black Panthers, contestando o extablishment, o american way of life e O projeto do self made man.
Era uma época de efervescência crítica, pois, com o passar dos anos 50, a afirmação da grande nação americana e seus valo­res se mostraram através de suas duas faces: as formulações me­ramente simbólicas e a face real das intervenções na Guerra da Coréia e da perseguição maccarthista a todo pensamento diver­gente. E se ainda não se havia generalizado nenhuma crítica psi­cossocial e política aos valores vigentes, se tais questionamentos se encontravam marginalizados, eles partiam exatamente de seio de grupos de estudantes, intelectuais e artistas, com quem Albee convivia desde que se separara da família. E foram sem dúvida influências marcantes na formação de dramaturgo, absorvidas e reinterpretadas por sua obra.
Durante os primeiros dez anos que viveu em Nova York, Albee não conseguiu nenhum êxito em suas pretensões literárias. Procurou então o auxílio de escritores mais velhos e experientes. Auden (1907) considerou seus poemas muito etéreos e seu estilo excessivamente enfático, aconselhando-o a realizar uma in­cursão corretiva por poemas pornográficos. Em 1953, Thornton Wilder (1897-1975) recomendou-lhe que escrevesse para o teatro, onde poderia desenvolver melhor sua narração imaginativa. Wil­liam Flanagan, o compositor com quem Edward dividia seu apar­tamento nesse período difícil, de 1952 a 1959, foi testemunha de seu desespero, ao se ver chegando aos trinta anos sem ter produzi­do nada de aproveitável.
Foi assim que, em 1957, em meio a crises de angústia pelo peso de um trabalho infrutífero, Albee sentou-se à mesa da cozi­nha e começou a escrever A História do Zoológico. Escreveu a peça em três semanas, com a facilidade técnica de um velho pro­fissional. Embora não tivesse sido um freqüentador assíduo de teatros, tinha lido muitas obras teatrais e conhecia Eugène Iones­co (1912 ), Tennessee Williams(1914), Eugene O’Neill (1888-1953), August Strindberg (1849-1912), T. S. Eliot (1888-1965), Luigi Pirandello (1867-1936), Samuel Beckett     (1906     ) e Jean Genet (1910     ). A História do Zoológico foi um desafio, que provou ao próprio Albee sua capacidade de criar, recuperando-o para si próprio, em meio ao desespero.
Mas uma peça de um só ato dificilmente seria aceita pelos produtores norte americanos. Muito menos quando escrita por um autor desconhecido. Assim, a peça rodou de mão em mão até que, graças aos amigos de Flanagan. na Europa, chegou a Berlim, onde foi montada. Estreando em 1959, A História do Zoológico causou alguma vibração na Alemanha, o suficiente para abrir a Albee as portas dos teatros off-Broadway, casas de espetáculo suburbanas e secundárias em relação ao núcleo teatral dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, foi o passo inicial indis­pensável para atingir as casas de espetáculo on-Broadway. Pro­duzida por Richard Barr, a peça estreou em 1960, num programa que apresentava conjuntamente um trabalho de Beckett, procu­rando fazer com que o público estabelecesse conexão entre as duas encenações. Beckett, junto a Ionesco e Genet, vinculava-se ao chamado “teatro do absurdo”, que florescia na Europa nos anos 50 e ganhava força entre a intelectualidade norte-americana. A História do Zoológico teve 582 apresentações, um verdadeiro recorde para uma peça não musical apresentada off-Broadway.
Em Zoo Story a ação – ou o duelo entre dois indivíduos – transcorre no Central Park, num domingo à tarde. De um lado, Peter, um quarentão bem apessoado, nem gordo, nem magro, nem bonito, nem feio. Fumando seu cachimbo, ele está sentado num banco, lendo, quando chega Jerry. Assim que o outro se aproxima. Peter reage com desconfiança, pronto a defender sua serenidade, sua situação e o banco sobre o qual, todo domin­go, vem ler e descansar. Segundo Albee, “meio acordado, meio adormecido, ele procura atravessar a vida como tanta gente o faz; é o homem médio em todas as suas atitudes”. O retrato vivo do self made man, que segue as regras do arnerican way of life: tem uma família organizada, duas filhas pequenas, um bom em­prego, uma boa casa num dos bairros residenciais de Nova York. Jerry, ao contrário, é um homem estranho. Próximo dos quarenta, veste-se negligentemente, é um poeta que mora numa pensão, convivendo com os setores marginalizados da sociedade, desde os negros e porto-riquenhos aos homossexuais e aos fracassados. que não partilham do mundo limpo, harmônico, mas frio e antiséptico como um hospital, o mundo dos ajustados e conformistas. Durante toda a peça, Jerry procurara comunicar se com Peter,  o  pequeno-burguês fechado em seu mundo ordeiro e que se recusa a qualquer contato, a qualquer movimento, mesmo que seja ape­nas levantar-se de seu banco –  que é, literalmente, seu lugar ao sol. A imagem do zoológico, dada inicialmente pelo próprio título da peça, vai se reforçando com a história de Jerry, que acaba de chegar do Jardim Zoológico. E será repisada a todo momento –  representando o mundo em que vivemos e no qual impera a competição pela sobrevivência. A imagem é rica de significados, pois é no zoológico que se pode estudar o comportamento dos homens perante os animais, e vice-versa, assim como o comporta­mento dos animais entre si, isolados em suas jaulas. As grades impedem a comunicação, tornando praticamente impossível vencer o individualismo, o desespero e a solidão. Contra as grades protetoras de Peter é que Jerry investe, num duelo entre a vida e a morte, conceituados metafisicamente. Jerry só vencerá o duelo fazendo com que Peter o mate – e o assassinato involuntário acaba sendo o único ato de comunicação emocional entre os dois. Peter e Jerry, entretanto, são aspectos complementares de uma mesma personalidade social doentia, representando o bem (tudo o que é considerado normal para a “maioria silenciosa”) e o mal as minorias, os desajustados e aqueles que buscam ultrapassar as grades das jaulas e tocar nos outros, com suas mãos negras, sujas ou carregadas de desejo.
Depois de Zoo Story, vieram A Caixa de Areia (The Sand Box, 1959) e O Sonho Americano (The American Dream, 1960), duas peças complementares. A primeira, dedicada à sua vovó Cotta, passou quase despercebida do público americano. A segunda, porém, é uma das obras mais conhecidas de Albee.
Em A Caixa de Areia estão presentes quatro personagens:  o  Rapaz, Papai, Mamãe e Vovó, todos reunidos numa praia. Em quinze minutos Vovó morre na areia, sob o calor insuportável do sol. Morre, ou é morta pela desatenção de Papai e Mamae. Morre, ou se faz matar, como algo que já não tem mais valor numa sociedade que se desembaraça dos velhos, assim como es­conde seus monstros e seus doentes. Em cena, contrapõem-se o Rapaz, anjo da morte, símbolo do ideal apolíneo e do futuro, e Vovó, representante dos antigos valores, da dignidade, da mulher pioneira que cedo enviuvou e, com seu próprio esforço, conseguiu criar sua filha, Mamãe.
Em O Sonho Americano, são as mesmas personagens que se relacionam, só que a ação transcorre no apartamento pequeno-burguês de Papai e Mamãe. O casal recusa-se a admitir Vovó em sua vida, desejando mandá-la para um hospício, como uma velha louca, que defende valores que não fazem o menor sentido no presente. Monta-se assim o quebra-cabeça da ideologia ameri­cana: o casal, que corporifica o presente, o que está estabelecido, com suas contradições e seus temores; o Rapaz. futuro propugna­do pelo presente, que é a esperança, o paradigma, mas não tem sequer um nome, uma qualidade particular: a Velha, vinculada ao passado, a sentimentos ultrapassados, que moviam os pionei­ros da sociedade americana. Montado, o quebra-cabeça apresenta uma imagem sarcástica e angustiante de uma sociedade que vive a ilusão dos cenários de Hollywood, réplica e falso espelho do real, onde a vida deixou de existir: Papai é rico, mas impotente, sinal claro da negação da vida e da criação, assim como de todo prazer, desde o mais básico e carnal: Mamãe, insatisfeita, canali­za toda a sua agressividade para Papai e Vovó: mas, para sanar a esterilidade, a América tem um sistema amplo de assistência, que distribui crianças sob medida. E ai Albee coloca em cena mais um mito da ideologia ocidental: a criança é a esperança, o futuro, o sonho. Só que esse sonho é delimitado pelos padrões vigentes, formado e conformado segundo o modelo apolíneo, preocupado somente com a aparência e não com a essência das coisas. O novo é apenas a nova embalagem de um produto já conhecido e consumido pela sociedade de massas e de consumo.
Em 1960 surge também A Morte de Bessie Smith (The Death of Bessie Smith). Na peça. a cantora negra é apenas uma referência, um símbolo da negritude. A ação se passa em 1937, num hospital do Sul dos Estados Unidos. Bessie Smith está ferida e precisa de atendimento urgente: ela precisa entrar no mundo branco e antiséptico do hospital para poder ser salva, Albee faz uma análise quase psicanalítica da população do Sul, e do lugar que o negro ocupa nessa sociedade. Mas, Norte e Sul fazem parte da mesma unidade contraditória, que são a nação norte-america­na e toda a sua ideologia. Em cena, estão um enfermeiro negro, amigo de Bessie, o qual se submete às regras do jogo, para garan­tir seu lugar no hospital: uma enfermeira branca e um jovem me­dico branco. Como se trata de uma negra, o atendimento é prati­camente negado, até que o enfermeiro negro decide infringir as regras e, juntamente com o médico, vai prestar socorro a Bessie. Mas, no momento em que a solidariedade se manifesta, ela se torna inútil, pois Bessie já está morta. Esse gesto inútil permitirá ao hospital expulsar os não-conformistas, exatamente Como o Sul e os Estados Unidos liquidam políticos e apóstolos progressistas. Novamente a morte é o desfecho da ação, como em .A Historia do Zoológico e A Caixa de Areia. As vítimas, assassinadas, representam o poeta (Jerry), o pioneiro (Vovó) e o artista (Bessíe), algumas das forças vivas da América.
Em 1962 surge o maior sucesso de Albee, apresentado em quase todo o mundo em suas montagens teatrais e no filme dirigi­do por Mike Nichols, com Richard Burton, Elizabeth Taylor, Sandy Denis e George Segall: Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, um instigante e tempestuoso duelo entre um casal de meia-idade, envolvendo um casal jovem, que se diferencia do mais velho apenas pelo tempo menor de convivência.
Com esse trabalho, Albee tornou-se um homem rico. Estra­nhamente, ele também realizou o projeto do self made man, che­gando sozinho ao sucesso e conseguindo dinheiro e status. Além do lucro conseguido pelas montagens teatrais de Virgínia Woolf a versão cinematográfica da peça tornou-se um dos filmes em preto e branco mais rentáveis feitos até hoje. Ao lado do sucesso financeiro. Albee foi eleito novo membro do Instituto Nacional de Letras e Artes e teve seu nome inscrito na lista dos Jovens Mais Importantes dos Estados Unidos em 1962-1963.
Sem dúvida, a fortuna permitiu a Albee uma vida mais con­fortável, e o sucesso possibilitou-lhe ampla circulação nos meios intelectuais e entre a elite da sociedade americana: Mas permitiu-lhe também participação mais decisiva num de seus mais impor­tantes trabalhos, em desenvolvimento desde 1961. O Playwright’s Unit — associação de Albee com Richard Barr e Clinton Wilder, dois grandes produtores de teatro ganhou novo impulso em seu objetivo de revelar novos autores, oferecendo- lhes condições de trabalho, liberdade de criação e possibilidade de montagem de seus textos. O Albarwild, como se tornou conhecida adminis­trativamente a associação depois de 1965, colocou à disposição dos jovens dramaturgos uma pequena sala de espetáculo off-Broadway, o Village South Theater, onde várias peças de autores desconhecidos foram montadas sem nenhuma pressão comercial nem de crítica, por simples amor à arte, ao teatro independente. Equipe técnica, diretores, atores –  muitos de primeira grandeza – trabalham sem remuneração, unidos no mesmo ideal. Todos os trabalhos apresentados no Albarwild são lidos e apreciados pelos associados; cada novo dramaturgo é tratado com o mesmo respeito que Albee. É um atelier de teatro dos mais eficazes e que tem contribuído para o aparecimento de dramaturgos como Sam Shepard e Leroy Jones, entre outros.



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