terça-feira, 31 de janeiro de 2012

DRAMATURGIA EM FOCO: FERNANDO ARRABAL Parte 4


O HUMOR, A POESIA, O PÂNICO 

Quando Victor Garcia montou Cemitério de Automóveis, o nome de Fernando Arrabal estava estreitamente ligado ao cha­mado teatro pânico. O conceito de “pânico” começara a ser elaborado a partir das discussões de Arrabal, Roland Topor, Ale­xandro Jodorowski, Jacques Sternberg e outros intelectuais, que entre 1960 e 1962 se reuniam no Café de la Paix, em Paris.
 Numa conferência em Sidney, por ocasião da montagem australiana de Fando e Lis, em 1963, Arrabal dizia que pânico não era um grupo nem um movimento, mas uma   “maneira de ser” de acordo com uma ideologia que tinha por fundamento a exaltação da moral múltipla.
Arrabal definia o herói pânico como um desertor: Ele tem fantasmas (paranóia e não esquizofrenia), megalomania e modés­tia, desespero (e não angústia; ele não se suicida), doenças ou deformações, ciúmes, fetichismo, necrofilia, mitomania. etc.”. O teatro pânico era, em suma, um grande cerimonial presidido por confusão, humor, terror, acaso e euforia.
Nos primeiros anos da década de 60, as publicações,  exposições e filmes de curta metragem do grupo fizeram sucesso em Paris. Topor realizou um happening memorável, com 500 quilos de carne fresca; Jodorowski –  que era um dos melhores encena­dores do teatro de Arrabal –, inspirado no teatro espanhol do século de ouro (XVI), montou um grande auto sacramental; Gallimard fez aparecer nas livrarias a primeira coleção de livros pânico; Arnaiz pintou o quadro Arrabal Combatendo sua Megalo­mania. Por outro lado, uma série de diretores como Victor García, Jodorowski, Georges Vitaly, Jorge Lavelli, Jerôme Sa­vary, animados pela necessidade de fazer um teatro novo, inquie­tante e liberador de emoções, encontraram na obra de Arrabal um veículo perfeito para suas proposições.
Na verdade, as novas inquietações em relação ao espetáculo teatral não se circunscreviam ao grupo pânico e aos encenadores que gravitavam em torno dele. Como diz o próprio Arrabal, o pânico estava no ar. Possivelmente, não o mesmo tipo de pânico, mas a preocupação com um teatro onde a platéia fosse atingida numa relação direta, torturante e muitas vezes física. Apesar de diferirem das tentativas de Jerzy Grotowski, de Peter Brook. ou do Living Theatre, nenhum deles negava a necessidade do teatro se fazer ritual, romper seus espaços convencionais e entrar num contato mais estreito com o público. Como Antonin Artaud, eles achavam que o teatro devia realizar uma função: “O teatro não poderá tornar a ser ele próprio, ou seja, constituir um meio de ilusão verdadeira, se não fornecer ao espectador modelos verídi­cos de sonhos, em que seu apetite do crime, suas obsessões eróticas, sua selvageria, suas quimeras, sua noção utópica de vida e das coisas e seu próprio canibalismo transbordem para um plano que não é suposto nem ilusório, mas interior”.
Antonin Artaud elaborara seu Manifesto do Teatro da Crueldade em 1932. Trinta anos depois suas idéias encontraram eco numa nova geração de encenadores. E muitos deles, mesmo ignorando as teorias de Artaud, chegavam por seus próprios ca­minhos a conclusões semelhantes. O           pânico foi inicialmente revelado por Arrabal nos romances O         Enterro da Sardinha (L’Enterrement de la Sardine), de 1961, e A Pedra da Loucura (La Pierre dela Folie,), de 1964. As primeiras peças do teatro pânico surgiram em 1964: A Coroação (La Couronnement), O Grande Cerimonial (Le Grand Cérémonial,) e Strip­Tease do Ciúme (Strip-Tease de la Jalousie). Dois anos depois ele escreveria uma das melhores peças da sua carreira, O Arquiteto e o Imperador da Assíria (L’Architecte et L’Empereur d’A ssyrie). Quando a obra foi montada, em 1967, por Jorge Lavelli, seu sucesso projetou o nome de Arrabal numa grande parcela de público que, desinteressada pelas manifestações de vanguarda, ainda não o co­nhecia. Como ele próprio diria: “Eu acho que o povo começou a dizer, para si mesmo, Arrabal existe”.
    Arrabal existia, mas o governo espanhol não sabia. Nesse ano, seria preso em Múrcia. Foi sua última viagem à Espanha. De volta a Paris, terminou uma nova peça, O Jardim das Delícias (Le Jardin des Délices), para a qual fora buscar atmosfera na Espanha. A obra, inspirada na fantasmagoria simbólica de um quadro de Hieronimus Bosch, enriqueceu-se com a experiência da prisão. A personagem principal, Lais, era uma artista que vi­via reclusa no mundo das quimeras e fantasias de sua infância e adolescência, vividas num internato religioso. Arrabal mostra esse mundo terrível e repressivo, com suas práticas inquisitórias que foram reavivadas na visita à Espanha. Mas a expressão mais clara de sua experiência de preso político foi registrada em 1969, em E Eles Colocaram Algemas nas Flores (Ei lis Passérent des Mennotes aux Fleurs, J. Durante um ano, a peça ficou em gesta­ção. Nesse período ele escreveu Aurora Vermelha e Preta (L’Au­rore Rouge ei Noire), Bestialidade Erótica (Bestialité Erotique) e Uma Tartaruga Chamada Dostoiévski (Une Tortue Nommée Dostoievsky), preparando-se para registrar, à sua maneira, a tra­gédia dos prisioneiros políticos.
O       título, E Eles Colocaram Algemas nas Flores, foi inspi­rado numa frase de Lorca: “Diga às flores que não se envaideçam de sua beleza. Pois elas serão algemadas e viverão sob os ventos corrompidos da morte”. Essas palavras, pronunciadas pelo poeta pouco antes de morrer, são consideradas por Arrabal um aceno premonitório à repressão que se abateria sobre a Espanha.
E Eles Colocaram Algemas nas Flores é uma mescla de fan­tasia e realidade, surrealismo e documentário, através da qual o autor desvela a paródia dos julgamentos políticos, as degradantes condições das prisões espanholas e as etapas do processo que condenam um homem ao garrote vil. Os sonhos, no curso dos quais os prisioneiros experimentam seus únicos momentos de liberdade, são um aspecto da realidade obsessivamente revelada por Arrabal. Em seus delírios oníricos, os detidos liberam seu erotismo, mas não conseguem tirar da memória os seus pavores.
A peça prevê a integração da cena com o espectador. Desde o momento em que o público faz sua entrada no teatro, começa a participar do espetáculo, pois ele não senta onde deseja, mas onde o ator, que o conduz ao espaço de representação, acha que ele deve ficar. Os planos reservados à platéia praticamente se confundem com os planos da ação. Por assim dizer, o espectador está dentro da peça o tempo todo, gozando do mesmo descon­forto que as personagens, torturado por seus sonhos e por sua condição, Arrabal sugere que na metade do espetáculo ou no epilogo o espectador participe realmente da ação, no momento em que os atores, improvisando, convidam a assistência a contar um fato de sua vida, ou pedem voluntários para um ritual sadomasoquista. Na França e nos Estados Unidos, mais da metade da audiência queria participar, o que transformava o espaço cênico numa grande área de psicodrama. Arrabal colocava nessa obra todos os pontos do manifesto de Artaud, alguns dos quais já tinham aparecido em peças anteriores, sobretudo na montagem que Victor García realizou para Cemitério de Automóveis.
Em 1970, Arrabal voltou-se para o cinema e realizou o filme Viva La Muerte!, uma adaptação de seu romance Baal-Babilôinia. Seguiram-se A Árvore de Guernica (L’Arbre de Guernica) e Eu Correrei como um Cavalo Louco, onde os mitos e obsessões de Arrabal são levados ao paroxismo.
Alguns críticos sustentam que Arrabal, onde quer que manifeste seu gênio criativo, realiza sempre a mesma obra, delirante e autobiográfica, cuja fonte é a Espanha mística, blasfema, reprimida, repressora, trágica, farsesca e barroca. O próprio Beckett dizia aos juizes de Madri, em carta que foi lida pelo advogado de Arrabal durante o processo de 1967: “Onde quer que suas peças sejam montadas e elas são montadas em todos os luga­res a Espanha está ali”.



Nenhum comentário:

Postar um comentário